"Arco de Baúlhe: 6 voltas em Derredor, por Antero Barbosa
1.ª
Como se vai para o Arco? Até ver, é desta forma: Cama, casa-de-banho, porta, porta da rua, rua, Porto, via de circunvalação, A3/A4, deixas a A4 de lado rompes na A3, que a seguir também deixas de lado, auto de Guimarães, atravessas a cidade, ladeias a Penha, deixas a estrada de Felgueiras, desces para Fafe, Fafe ao lado, por Moreira de Rei, subida da serra, fonte à esquerda bica fria na boca, sobes, curva à direita, curva à esquerda, curva curva curva, contracurva, corcovos sucessivos, um lombo dá lugar a outro, voltas a descer e a subir, Vázea Cova e nova descida e nova subida, mini-alto, grande recta surpresa com seu Café da Recta ao fim, descida inclinada, gelo, cuidado!, deixas Cabeceiras ao lado, desces, Outeiro, Alvite, Santa Senhorinha, pequena subida breve salto de coelho, estás no Arco.Tanta coisa que tiveste de abandonar, que ficou de lado! É o decreto-lei da vida. Mas estás no Arco.
2.ª
Baúlhe é misto de vila e aldeia. Animal bifronte, como o sagitário ou o gnu. A vila é o centro, a baixa, com seus cafés, confeitarias, seus largos, suas lojas, padarias, drogarias, alfaiate, pronto-a-vestir, mecânico auto, stand de carros, vestidos de noiva, ruas becos calçadas, passeios, pessoas, encontros, diálogos, vivacidade, pequeno bairro de Paris, carros, motas, bicicletas, a pé, homens donas raparigas, crianças, moinas à porta do bar, casal de gravata e vestido, velhotas muitas negras, e com jeito, se te encostares aos grupos, hás-de encontrar o médico geral, o ingenheiro, o adbogado, a enfermeira, a professora, a profissional ... até o abade pode surgir a todo o instante preto de batina.
3.ª
Em volta, designadamente a ocidente, persiste a área rural, embora contruída em azinhagas. Campos, arvoredo, pássaros, erva, poças, regos, lameiro, sapos caracóis lesmas, cheiroso loureiro, belo velho carreiro abandonado, estreito entre muros entre leiras à mercê das badaladas dos sinos do centro. É aí que ocorre a matança dos porcos. Vêm dos lados de Montalegre, numa carroça cheia de grunhidos, retiram-se quatro, prendem-se no quinteiro, estão dois agressivos bancos preparados oito homens seis mulheres e a cozinha e as panelas e a salgadeira e as facas enormes afiadas, agarra-se o primeiro, à unha, aos gritos, sete-cães-a-um-osso, vai! força! ei!, espeta-se com ele contra o banco, agarram-no com todos os braços, a confusão manda uns contra os outros, a faca entra na barbela do pescoço, o animal berra uiva atroa a aldeia, o sangue esguicha e espicha no alguidar, berra, vai resfolegando vai esperneando vai afrouxando, deixa de coicear, deixa de espernear, está morto, atira-se para o chão, venha outro, e outro e outro, trato igual, a seguir são chamuscados, os pelos, o coiro, com maçarico, são lavados com sabão e esfregados com pedra de bloco, estão loiros como leitões da Bairrada, estão lindos, agora abre-se-lhe o ventre, dois de cada vez, um em cada banco, penduram-se na loja, ao alto, contrariamente a outras regiões de focinho para cima, repara olha, duas gotas de sangue escorrem no rabicho.
4.ª
Meio-dia. Calor. Calma. Devagar, lento, tranquilamente, vais à Churrasqueira do Paço, sentas-te na sombra da mesa, vitela assada, frango assado, costeleta assada, tudo assado na brasa à mostra, vem o bife grelhado, tostado gostoso suculento, vem a infusa de vinho tinto coroado de espuma, o arroz a batata o pão a salada, já estás de coração sossegado, encostas as costas contra a cadeira, breve massagem, olhas lá para fora o ar quente, vem a sobremesa e o café, demoras um pouco mais, voltas ao centro da vila, não sem antes passar pela estação, velha suja desactivada com ferros entrelaçados pairando, apenas museu ao ladodo dito, entestas na estrada de Pedraça, mas não vais à verde Pedraça, duzentos metros à frente desces pela esquerda, deslizas escorregas quase cais na praia fluvial do Caneiro, sentas-te na areia contra o muro, metes os calções, fumas um cigarro demoradamente, olhas as vozes os gritos o barulho os vultos as pessoas, os corpos que cachoam na água, paisagem fresca e molhada, mergulhas também, o corpo torna-se de água, assim gastas a tarde.
5.ª
Curioso, tentaste obter a informação a todo o transe e nada. Afinal aonde fica o arco? "Nunca ouvi falar", "Não sei". Procuras interrogas buscas olhas. Ninguém te sabe dizer, não o encontras, nem as ruínas sequer, um arremedo. Arco só se fôr o íris quando chove. Persistente, insistes, lanças iculcas, voltas a inquirir, pedes que o façam por ti alargando o número de hipóteses. Nada, não há arco nenhum nem nunca houve. Então desistes, conformado. Arco, o arco de Baúlhe, só existe mesmo como palavra, redonda, incrustada no topónimo.
6.ª
Regressas de noite. A condução torna-se difícil. Não há terras, não há placas, apenas estrada, negra, lambida pelos faróis. No alto, onde se escondem as corcovas da serra, nasce um banco de nevoeiro, escorre, caminha, cresce. Não se enxerga um palmo. Vais a dez à hora. No entanto, outros carros apitam para ultrapassar, passam rápidos, suicidas. O nevoeiro é um muro cerrado, cuidado, quase te despistas, os passageiros vão assustados. Mas tu tens que prosseguir, tens que teimar. Todo concentrado, arrancando os olhos, rasgas o nevoeiro, rasgas o nevoeiro, rasgas o nevoeiro, rolos e rolos escuros, porventura a estrada entrou pelo mar dentro, e aturdido cansado tenso rompes, devagar devagar caracol. Estranho! Parece uma praga! Dá a ideia que o Arco se apoderou de ti, te enfeitiçou, e exige o regresso, exige que voltes para trás, que voltes novamente para o Arco. "
***
Este texto de Antero Barbosa, retirado do seu
blog, é delicioso. À segunda volta, o autor consegue definir, melhor que ninguém, a essência e a diferença desta terra, só não conseguiu encontrar o Arco no seu significado de pedra. Ou não perguntou devidamente ou simplesmente perdeu-se na tradução - aqui ninguém se explica muito bem. De qualquer forma, publico a foto para que veja, e vejam, como é.
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