Chegamos à planura da Letónia iam as horas adiantadas, 5 que contavam 7 com estas coisas do fuso, e o sol persistente ainda que pouco mais de um palmo acima do horizonte. As temperaturas por esta altura, arranham uns meados de Março português que se aguentam de casaco aberto se as nuvens não crivarem demasiada luz directa. Há no ar um aroma de maresia, de óleo e chauffage, mas o saco onde prensei as coisas vai pesando uma manhã e tarde inteira de arrastão e desvia-me os sentidos para olhar em redor por amparo ao corpo, assim que desço o pé do autocarro junto à Estação Central de Riga.
Somos recebidos por Juris, que nos espera de bicicleta, e convidados a tomar um trolejbuss rumo a um velho edifício de ferroviários, a ladear uma rua de passeios esmigalhados que se fecha no portão de uns antigos estaleiros de comboios de mercadorias. A porta de entrada do prédio abre-se digitando um código num teclado retro, e logo nos denuncia a um cão, com o barulho da madeira, inchada pelos anos, a emperrar-se chão adiante. O latir ameaçador por detrás da porta dupla do apartamento revela um rafeiro que quase me cabe entre as duas mãos. Instalados num pequeno apartamento de divisões confusas, dorme-se assim que se estende as pernas e a conversa noite dentro, embalados no Balzams que Juris misturou num sumo de amoras fervido - remédio caseiro para maleitas respiratórias e noites mais frias...
De dia, Riga é esta cidade de rosto contido, incomodado, dorida de tantos anos de nariz alheio metido nela. Há esta crispação a cada solicitação, como se não fossemos bem-vindos, russos nós também. A cidade até que acolhe 40 por cento deles, desde a ocupação, quase tantos quanto os letões nativos, mesmo assim a gente leva o azedume deste fogo cruzado. Só o ópio do tempo deverá amainar as tensões entre hóspedes e hospedeiros.
Juris é um bom exemplo de que os mais novos estão antes preocupados com as oportunidades que o futuro que lhes reserva - esta aventura capitalista - que propriamente o passado, a autoridade e a austeridade. Enquanto não se desce para as galerias num edifício esquinado ao Município, onde decorre um festival de música experimental, um grupo de amigos locais fumam e brincam comigo dizendo que ali, como na Rússia, certas liberdades compram-se directamente à polícia e à nomenclatura e não na lei. Turistas são várias vezes sondados, quando incautos se atrevem a beber na rua ou a puxar de um charro, custa-lhes um punhado de lats, euro e 30 cada um.
Os subúrbios e os fins de semana à noite ainda mostram uma Perestroika a afogar as mágoas na vodka. Nas passagens subterrâneas que contornam por baixo o emaranhado de asfalto, carris de eléctricos e fios de trolejbuss, o vaivém de alcoólicos dissimulados, velhas senhoras compram bondade enquanto nos estendem a mão. Parece haver uma miséria de idade e uma miséria de mercado. A União Soviética, esse prolongamento socialista da Rússia imperial, abandonou os seus cidadãos também por aqui, às sortes do Ocidente. O fantasma erra pelas ruas como a querer encaixar-se de alguma forma, mas a pujança enferruja-se-lhe como as carcaças dos Antonov no museu anexado ao Aeroporto de Riga.
As gerações russas pós-URSS já vão no entanto contando híbridos escondidos por detrás de apelidos letões. Os outros nomes, como as palavras, ditas e escritas, são-nas de diferente maneira. Não há comparação possível entre o russo e o letão que não seja na nossa distante ignorância. Riga, hoje como nunca, quer livrar-se do vermelho e (re)experimenta-se a si própria, na música, na arquitectura, nas artes e na liberdade, ainda que os penteados à Ágata se notem entre as mulheres pernaltas e desencapotadas, raramente obesas. Os edifícios envidraçados que se erguem alto da outra margem do rio Dauvaga, ou Duína Ocidental, fazem inveja à torre da televisão nacional, à Catedral e Igrejas de Galo empoleirado nas erectas cristas. A ousadia ameaça o título da Unesco, capital art nouveau e jugo de arquitectura comunista, donde se destaca o Palácio da Academia da Cultura e Ciência, qual versão amputada pelo meio do colosso da Universidade Estadual de Moscovo.
Naqueles cinco dias ainda troquei Riga por duas amantes, uma de madeira estendida ao sol na Estónia, serena como o báltico: Parnü; e Vilnius, capital da Lituânia. Esta última ondula primaveril entre colinas suaves, entremeadas de igrejas barrocas, góticas e neoclássicas - como a Catedral -, os aranha-céus e a verdura por onde os lituanos se esguelham da polícia para beber uma cerveja olhando a sua cidade. O seu charme acolhedor, nas 24 horas do dia, embebem qualquer humano como carne por entre o empadão, o creme e as sopas leitosas. O amor que lhe entreguei findou como paixão de uma noite, pois assim que, de regresso, olhei Riga da Ponte Dienvidu, lembrei-me que, do lado leste do Báltico, aquela seria a cidade para o resto da vida.
Somos recebidos por Juris, que nos espera de bicicleta, e convidados a tomar um trolejbuss rumo a um velho edifício de ferroviários, a ladear uma rua de passeios esmigalhados que se fecha no portão de uns antigos estaleiros de comboios de mercadorias. A porta de entrada do prédio abre-se digitando um código num teclado retro, e logo nos denuncia a um cão, com o barulho da madeira, inchada pelos anos, a emperrar-se chão adiante. O latir ameaçador por detrás da porta dupla do apartamento revela um rafeiro que quase me cabe entre as duas mãos. Instalados num pequeno apartamento de divisões confusas, dorme-se assim que se estende as pernas e a conversa noite dentro, embalados no Balzams que Juris misturou num sumo de amoras fervido - remédio caseiro para maleitas respiratórias e noites mais frias...
De dia, Riga é esta cidade de rosto contido, incomodado, dorida de tantos anos de nariz alheio metido nela. Há esta crispação a cada solicitação, como se não fossemos bem-vindos, russos nós também. A cidade até que acolhe 40 por cento deles, desde a ocupação, quase tantos quanto os letões nativos, mesmo assim a gente leva o azedume deste fogo cruzado. Só o ópio do tempo deverá amainar as tensões entre hóspedes e hospedeiros.
Juris é um bom exemplo de que os mais novos estão antes preocupados com as oportunidades que o futuro que lhes reserva - esta aventura capitalista - que propriamente o passado, a autoridade e a austeridade. Enquanto não se desce para as galerias num edifício esquinado ao Município, onde decorre um festival de música experimental, um grupo de amigos locais fumam e brincam comigo dizendo que ali, como na Rússia, certas liberdades compram-se directamente à polícia e à nomenclatura e não na lei. Turistas são várias vezes sondados, quando incautos se atrevem a beber na rua ou a puxar de um charro, custa-lhes um punhado de lats, euro e 30 cada um.
Os subúrbios e os fins de semana à noite ainda mostram uma Perestroika a afogar as mágoas na vodka. Nas passagens subterrâneas que contornam por baixo o emaranhado de asfalto, carris de eléctricos e fios de trolejbuss, o vaivém de alcoólicos dissimulados, velhas senhoras compram bondade enquanto nos estendem a mão. Parece haver uma miséria de idade e uma miséria de mercado. A União Soviética, esse prolongamento socialista da Rússia imperial, abandonou os seus cidadãos também por aqui, às sortes do Ocidente. O fantasma erra pelas ruas como a querer encaixar-se de alguma forma, mas a pujança enferruja-se-lhe como as carcaças dos Antonov no museu anexado ao Aeroporto de Riga.
As gerações russas pós-URSS já vão no entanto contando híbridos escondidos por detrás de apelidos letões. Os outros nomes, como as palavras, ditas e escritas, são-nas de diferente maneira. Não há comparação possível entre o russo e o letão que não seja na nossa distante ignorância. Riga, hoje como nunca, quer livrar-se do vermelho e (re)experimenta-se a si própria, na música, na arquitectura, nas artes e na liberdade, ainda que os penteados à Ágata se notem entre as mulheres pernaltas e desencapotadas, raramente obesas. Os edifícios envidraçados que se erguem alto da outra margem do rio Dauvaga, ou Duína Ocidental, fazem inveja à torre da televisão nacional, à Catedral e Igrejas de Galo empoleirado nas erectas cristas. A ousadia ameaça o título da Unesco, capital art nouveau e jugo de arquitectura comunista, donde se destaca o Palácio da Academia da Cultura e Ciência, qual versão amputada pelo meio do colosso da Universidade Estadual de Moscovo.
Naqueles cinco dias ainda troquei Riga por duas amantes, uma de madeira estendida ao sol na Estónia, serena como o báltico: Parnü; e Vilnius, capital da Lituânia. Esta última ondula primaveril entre colinas suaves, entremeadas de igrejas barrocas, góticas e neoclássicas - como a Catedral -, os aranha-céus e a verdura por onde os lituanos se esguelham da polícia para beber uma cerveja olhando a sua cidade. O seu charme acolhedor, nas 24 horas do dia, embebem qualquer humano como carne por entre o empadão, o creme e as sopas leitosas. O amor que lhe entreguei findou como paixão de uma noite, pois assim que, de regresso, olhei Riga da Ponte Dienvidu, lembrei-me que, do lado leste do Báltico, aquela seria a cidade para o resto da vida.
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