Os costumes na Bíblia, bons ou maus, são quanto muito ultrapassados. Não há como contornar. As leis, uma versão impressa em tábuas do que nos é natural como espécie, a regular o ordenamento e ordenhamento em convivência, com o imbróglio das interpretações quase sempre em sacrifício do bom senso. As proto-directivas de saúde pública, como aquela coisa da carne de porco, são reforçadas pelo pecado. A entidade divina, omnipresente no livro e na vida dos fiéis, ora inspira ora chantageia. É na ignorância, uma substituição da prova de um saber acumulado e empírico. É, na ignorância, um misto de cão-pastor e lobo mau que mantém o rebanho coeso.
De resto, esse deus que Saramago acusa é apenas a construção monolítica e concentrada de todos os feitios espalhados nos deuses gregos e romanos, ou de outras tantas religiões polipartidas. É o deus feito à semelhança dos homens, onde cabem todos os seus defeitos e virtudes, remorsos, fragilidades e mania das grandezas. A culpa é dirigida ao que os homens fazem de deus, e ao que esse deus fabricado faz dos homens.
No ateísmo que, na negação, também pode ser uma forma de fé, que se tenha a noção de que a religião está longe de ser uma forma pura de espiritualidade e não passa de uma loja montada sobre uma questão essencial da condição humana, que devia ser discutida e partilhada de igual para igual.
A realidade é que a religião institucional, com os seus dogmas e verdades absolutas, desde cedo polui e condiciona a mente e a liberdade do espírito humano, afastando os homens de uma reflexão descomplexada sobre a sua existência e aprisionando-os a rituais ridículos. O próprio sentimento religioso, a "presença de deus", é um comportamento condicionado, estritamente emocional e por si só incompleto. Enquanto não se perceber o domínio filosófico e neurofisiológico da espiritualidade, a sua ciência, apenas possível com pensamento abstracto, dificilmente se livrará a Humanidade do maior abuso intelectual que se lhe comete, logo desde criança.
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