sexta-feira, 23 de outubro de 2009

homem de deus

Desde há muito que vejo o Antigo Testamento como um híbrido de cancioneiro geral com um tratado de nacionalismo, feito de e para um povo com umbigo de especial, arrogante e místico como qualquer outro povo e império. (o povo português tem a sua própria bibliografia e tradição de desígnio superior). Traduz em metáforas e histórias, umas vezes belas, outras vezes absurdas, praticamente o mesmo cuidado poético, exercício explicativo das coisas da natureza, fascínio pela tragédia e obsessão procriativa da mitologia grega ou da camoniana.

Os costumes na Bíblia, bons ou maus, são quanto muito ultrapassados. Não há como contornar. As leis, uma versão impressa em tábuas do que nos é natural como espécie, a regular o ordenamento e ordenhamento em convivência, com o imbróglio das interpretações quase sempre em sacrifício do bom senso. As proto-directivas de saúde pública, como aquela coisa da carne de porco, são reforçadas pelo pecado. A entidade divina, omnipresente no livro e na vida dos fiéis, ora inspira ora chantageia. É na ignorância, uma substituição da prova de um saber acumulado e empírico. É, na ignorância, um misto de cão-pastor e lobo mau que mantém o rebanho coeso.

De resto, esse deus que Saramago acusa é apenas a construção monolítica e concentrada de todos os feitios espalhados nos deuses gregos e romanos, ou de outras tantas religiões polipartidas. É o deus feito à semelhança dos homens, onde cabem todos os seus defeitos e virtudes, remorsos, fragilidades e mania das grandezas. A culpa é dirigida ao que os homens fazem de deus, e ao que esse deus fabricado faz dos homens.

No ateísmo que, na negação, também pode ser uma forma de fé, que se tenha a noção de que a religião está longe de ser uma forma pura de espiritualidade e não passa de uma loja montada sobre uma questão essencial da condição humana, que devia ser discutida e partilhada de igual para igual.

A realidade é que a religião institucional, com os seus dogmas e verdades absolutas, desde cedo polui e condiciona a mente e a liberdade do espírito humano, afastando os homens de uma reflexão descomplexada sobre a sua existência e aprisionando-os a rituais ridículos. O próprio sentimento religioso, a "presença de deus", é um comportamento condicionado, estritamente emocional e por si só incompleto. Enquanto não se perceber o domínio filosófico e neurofisiológico da espiritualidade, a sua ciência, apenas possível com pensamento abstracto, dificilmente se livrará a Humanidade do maior abuso intelectual que se lhe comete, logo desde criança.

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